sábado, 15 de outubro de 2016

Tempos temerosos



Fábio Augusto da Silva Lima
Contato: fabioasl@gmail.com

O cantor e compositor Cazuza foi um visionário da sua época. Na década de 1980, escreveu a espetacular letra da música “O tempo não para”. Em um dos versos, diz que via “o futuro repetir o passado...” Se ocorresse nos dias, em 2016, não seria diferente. Vivemos tempos temerosos. A história da política brasileira repete seu passado, no caso, de tradição oligárquica, ruptura institucional e de eterno retrocesso.

Isso ficou evidente após a posse do atual presidente, ex-vice-presidente, Michel Temer. A começar pelo slogan adotado pelo seu governo, “Ordem e Progresso” que remete a época da Ditadura Militar no Brasil. Nem bem começou seu governo, com a consolidação do processo de impeachment da ex-presidente, Dilma Rousseff, que a afastou definitivamente do cargo, Michel Temer começou a implementar seu pacote de reformas fiscais, de redução dos gastos públicos, da reforma da previdência e trabalhista, dentre outras medidas, “um museu de grandes novidades”.

Mas como “tragédia pouca é bobagem”, o novo governo acena para o corte de despesas com saúde e educação, o que seria um caos, uma vez que essas duas áreas já passam dificuldades com os atuais recursos disponíveis. Isso sem contar na postura antidemocrática do presidente Temer, que não tem nenhum constrangimento em tomar decisões a seu bel prazer, como fez na proposta de reforma do Ensino Médio, por meio de medida provisória, sem nenhum tipo de debate com a sociedade, e pior, sem consultar os maiores afetados por essa reforma, como professores, alunos e comunidade escolar. Tudo isso com apoio da maioria de deputados e senadores, agentes e defensores do mesmo golpe.

Como politica compensatória, o presidente lançou na última semana o programa “Criança Feliz” que tem como objetivo, dar assistência a crianças de até 3 anos de idade, cuja família seja beneficiada pelo Bolsa Família. A proposta é que essas crianças tenham acompanhamento médico, pedagógico e psicológico. Faltam escolas, hospitais, moradias e vários outros bens sociais pelo país afora, mas agora temos o “Criança Feliz”.

O programa que está vinculado à pasta do Ministério de Desenvolvimento Social e Agrário, visa integrar ações de várias áreas, como assistência social, educação e saúde. Segundo a pagina oficial do Palácio do Planalto, a iniciativa quer oferecer às famílias beneficiadas pelo Bolsa Família mais informação e interação com suas crianças, para identificar oportunidades e riscos ao desenvolvimento infantil.

Como de praxe, o programa parece ter sido feito as pressas, para mostrar que o atual presidente também se preocupa com as questões sociais. “Só que não”. Na verdade, o que está em curso é a destruição dos bens sociais. No mais, como lhe falta carisma e popularidade, Michel Temer colocou a primeira dama, Marcela Temer, para apresentar o programa.

Ao analisar seus objetivos, é impossível não comparar essa iniciativa com a teoria de carência cultural, tão disseminada na época dos anos 70. Essa tese defende que o fracasso do aluno na escola advinha da sua carência de cultura, ou seja, da falta de cultura proveniente do ambiente em que vive. Em suma, isso quer dizer que as crianças pobres tinham dificuldade de aprender por terem menos cultura do que as crianças ricas.

A teoria de carência cultural se justificaria pela ideia de que os fatores socioculturais influenciarem diretamente nas características físicas, emocionais e cognitivas de cada criança, interferindo então, em sua capacidade de aprender.

Porém, esta teoria é falha em diversos pontos, pois não considera as diferenças individuais, contribuindo para aumentar ainda mais a desigualdade social; sugere e acredita que existe um padrão ideal e quantitativo de cultura adquirida; promove a segregação; direciona os alunos “carentes de cultura” para um caminho quase sem volta, rumo ao fracasso. Inclusive, há vários estudos de grandes autores brasileiros que criticam essa teoria, dentre eles, Paulo Freire e Demerval Saviani.

Ao resgatar essa teoria de carência cultural, por meio do programa Criança Feliz, o que já é lamentável, o governo Temer ainda conseguiu outra proeza: a tradição monárquica de colocar as mulheres em funções assistencialistas, no caso, sua esposa Marcela, como embaixadora das crianças do Brasil. Talvez seja para compensar o fato do seu governo ser composto quase que exclusivamente por homens, ricos, velhos e brancos, com exceção de Grace Mendonça, única mulher dentre os ministérios, nomeada para a Advocacia Geral da União.

Durante a apresentação do programa, por meio de um discurso curto, vago e cheio de clichês, a primeira dama enfatiza que esse será um trabalho assistencial, voluntário, não renumerado, uma vez que é casada com um homem rico e não precisaria de salário. Segundo ela, sua preocupação é com os cuidados na primeira infância, embora não seja profissional da educação nem da saúde, sua formação é na área do Direito.

Para terminar, voltando ao começo desse artigo, se “o futuro repete o passado” o grande poeta Cazuza também nos lembra de que “o tempo não para”, ou seja, o presente também pode possibilitar o Kairos, tempo da oportunidade na mitologia grega, então, que possamos romper com esse retrocesso politico em curso no Brasil, estabelecendo novas perspectivas, novas batalhas, novas conquistas, pois se queremos ter nossas crianças, de fato, felizes, é necessária e urgente à transformação da nossa realidade. Para isso, temos que deixar de “temer” para poder lutar e construir um futuro melhor.

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