Clóvis Santa Fé Jr[1]
Começo meu texto me
apropriando do título do ensaio do saudoso filósofo político Carlos Nelson
Coutinho — um dos textos que li durante a
faculdade e que me impactou profundamente — para discorrer sobre os últimos eventos
envolvendo as manifestações populares que tomam as ruas de todo o país, das quais
tanto me alegro mas também me preocupam. E faço isso não por acaso, mas pela
necessidade urgente de que pensemos os “caminhos” que essas passeatas estão
tomando, perpassadas pelo “ressentimento” e até por uma certa intolerância.
É
certo a existência de uma crise de nossas instituições políticas, que parece
revelar a falência da forma “partido” como mecanismo de representação política
dos anseios dos vários segmentos que compõem a sociedade como um todo. Isso
fica muito claro em frases de efeito que aparecem pintadas nos diversos
cartazes e/ou faixas dos manifestantes, como por exemplo, “nenhum Partido me
representa” ou “nem esquerda nem direita, eu quero seguir em frente”. Para mim, ser “apartidário” não obriga que
o mundo seja também e vice-versa. Já disse uma vez que o mundo das "plenas
certezas" é solo fértil para pensamentos totalitários.
Quando lidamos com o
conceito “democracia”, que pressupõe “liberdade de expressão e pensamento”, é
preciso respeitar a existência das diferentes formas de pensar o mundo, mesmo
que não concordemos com elas. Daí a importância do “Estado Laico”, o qual ao
separar o Estado da religião busca garantir a pluralidade de pensamento,
crenças (liberdade de culto), ideologias etc.
Neste sentido, a participação de
partidos políticos, que historicamente sempre defenderam causas progressistas,
é importante, para não dizer crucial, mesmo que isso se dê de forma
“oportunista” num primeiro momento. Impedir a participação nas manifestações de
rua das pessoas que possuem ideologia partidária abre caminho para algo mais
perigoso, ou seja, o “pensamento totalitário”. Penso que na luta por um Brasil
melhor cabe o diálogo com todas as forças progressistas, sejam elas partidárias
ou não. E não conseguiremos isso levando a destruição dos canais políticos de
diálogo. Dito de outra forma, unidos em nossas reivindicações somos mais
fortes do que lutando “uns contra os outros”.
Digo isso porque “onde o diálogo
cala a intolerância em suas múltiplas formas ruge”. Também se faz necessário
que façamos uma reflexão cuidadosa no que diz respeito ao surgimento de “pautas
espúrias”, como as que pedem o “Impeachment da Dilma” ou ainda uma “intervenção
militar”. Essas são reivindicações perigosas e ilegítimas, que grupos com
interesse em promover a instabilidade das instituições democráticas estão
tentando implantar como pauta principal das manifestações; buscam assim se
beneficiarem no final desse processo tomando e/ou manipulando o poder às custas
da inocência popular. A Presidente em
exercício foi eleita de forma legítima e deve permanecer no cargo até completar
o seu mandato mesmo que não gostemos de sua gestão. A desaprovação da
presidente deve ser revelada nas próximas eleições através do voto democrático.
Isso é a democracia. E não se enganem, essas “reivindicações” (refiro-me
ao “impeachment” e a “intervenção militar”) não tornam nossa democracia mais
efetiva (e/ou melhor) como fazem imaginar.
Ao contrário, elas alargam a crise
institucional de nossa jovem democracia, e não podemos retroceder nas
conquistas que o nosso país conseguiu nos últimos 28 anos (eleições diretas,
liberdades democráticas, etc.). Portanto, se o movimento que ocupa as ruas do
país não tiver uma agenda clara, pessoas organizadas (que seja até como
“associações de bairro” e não “ajuntadas” como estão) e disposição para negociar
politicamente a reivindicação dos direitos, caminharemos para a instabilidade
do regime democrático. Neste sentido, a possibilidade do retorno de um regime
autoritário, seja civil ou militar, passará a ser um dado concreto no horizonte
(o qual repúdio totalmente só em pensar em tal possibilidade!!!). Vivemos um
momento lindo da história brasileira mas grave devido a nossa fragilidade
institucional posta em xeque; um momento
em que o povo ocupa as ruas como nunca pensamos ser possível, mas que agora clama por algo inovador, isto
é, que as pessoas (incrédulas com os partidos) se organizem em organizações
e/ou associações de novo tipo para assumir com outras organizações (partidárias
ou não) a interlocução com os governos federal, estadual e municipal e tornar
concretas as reivindicações hoje legítimas. As redes sociais na internet
mostraram sua importância, cabe a nós agora acrescentá-las de forma inovadora
no diálogo democrático com quem nos representa.
Um novo Brasil e novas
instituições democráticas podem estar nascendo a partir desse poderoso “experimento
político” que estamos vivenciando, porém “é preciso o cuidado de não jogarmos o
bebê junto com a água do banho”.
Sejam bem-vinda “vozes das ruas”, nossa jovem
democracia sentiu muito sua falta!!!
[1]
É mestre em Sociologia pelo programa de Pós-graduação em Sociologia da UNESP/FCLAr e docente da Faculdade de Tecnologia de Sertãozinho (FATEC) nas
disciplinas “Sociedade, Tecnologia e Inovação” e “Sociologia das Organizações”
do curso de Tecnologia em Gestão Empresarial: Processos Gerenciais.